Ao leitor incauto é justo que se deixe este aviso: a
leitura é perigosa. Ela existe ou resulta do aprisionamento da palavra pela
escrita, fazendo da memória um alvo a abater: se está escrito, então podemos
esquecer. Ou seja, ler é igual a esquecer. E não ter memória equivale a estar
distraído do mundo, alheio aos pormenores e às ciladas. Ora, num livro, neste
livro, nada é deixado ao acaso e cada palavra, cada parágrafo, cada conto
cumpre ou procura cumprir o seu porfiado destino. Valerá, pois, a pena dizer
que todos os contos deste livro são reais, não no sentido em que aconteceram de
facto, mas no sentido em que poderiam de facto ter acontecido. O insurrecto
Pedro Pêra Boa é tão real como a gananciosa Balbina Pato-Vila ou o abandonado
Joaquim Elias. A abnegada Princesa Stewart Ferguson não é menos credível que o
malogrado Judas Escariote. E o ignóbil Pedro Alonzo não é menos plausível que o
imbecil Juan Gonzalez ou o sonho da abnegada Júlia Escobar, que eu sonhei
também. Atrevo-me a dizer, não sem alguma imodéstia, que neles está grande
parte dos pecados da condição humana: a ganância, a injustiça, a imoralidade, o
engano, a ingratidão, a vaidade, a luxúria, o conluio, a ignomínia, a
infâmia.
Os seus heróis são helénicos heróis trágicos porque, tal
como nós, cumprem um destino ao qual não podem escapar.
Haverá, porventura, quem venha a encontrar nestes contos
influências óbvias da literatura negra. Não creio, contudo, que assim seja. A
influência, a haver, é da própria vida. Que consegue ser bastante mais negra do
que estes negros contos.
Autor: Artur Dagge; Editora: HM Editora; Ano: 2011; Páginas: 100
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