terça-feira, 4 de maio de 2010

Sam Savage, Firmin, 2.º ed., Lisboa, Planeta, 2009, 157 pp.

Li este livro porque me pareceu que eu própria possuía, pelo menos uma, das duas qualidades requeridas na capa: Firmin é uma obra para todos que sentem a paixão pelos livros e que não perderam a capacidade de amar. Na contracapa, encontrei uma citação de Rosa Montero, uma autora da qual sou amiga, embora nunca a tenha visto. Dizia ela que esta obra tinha sido um acontecimento na sua vida de leitora. Estas duas “dicas”, colhidas na capa e na contracapa, catapultaram-me para dentro do livro e, de facto, não dei o meu tempo por mal empregue.

Firmin é um ser delicioso e inteligente, cuja vida, de tão desgraçada, consegue ser pior que a nossa própria existência, por muito chateados que possamos estar nesse dia…

As Aventuras de um Marginal na Cidade (o subtítulo) são contadas como um relato na primeira pessoa. Tudo começa com o nascimento desta ratazana na cave de uma livraria na zona velha da cidade de Boston. A sua mãe, alcoólica e pouco extremosa, deu à luz treze ratazanas bebés. Como tinha apenas doze tetas, Firmin vê-se sempre preterido pelos irmãos mais robustos e aptos. A inexistência da décima terceira teta é um trauma de infância de marcará para sempre a personalidade desajustada do protagonista.

A pobre ratazana bebé consegue sobreviver com as escassas gotas de leite materno que os irmãos desperdiçam e desenvolve, como mecanismo de superação, um desejo incontrolável por livros. Rói e devora todas as obras que se encontra ao seu alcance, num impulso autodestrutivo de biblobulimia.

Costuma dizer-se que somos o que comemos. Ora Firmin também compartilha desta opinião. Diz-nos ele: Às vezes gosto de pensar que os primeiros momentos da minha luta por viver foram acompanhados, à laia de marcha triunfal, pela deglutição de Moby Dick. Isso explicaria a minha natureza tão aventureira. Outras vezes, quando me sinto particularmente rejeitado e ridículo, convenço-me de que o culpado é o Dom Quixote.

Não se sabe bem como, mas, a certa altura, a pequena ratazana vai passar a comer cada vez menos e a ler cada vez mais, limitando-se a mordiscar as margens de certas páginas. No entanto, o apetite pela leitura é tão insaciável como fora a vontade física de deglutir o papel impresso. Firmin torna-se, cada vez mais, um ser diferente da sua espécie, conquanto tenha de aprender e dominar os rudimentos da técnica recolectora das ratazanas. Na companhia da mãe, aventura-se pelas ruas degradantes de Scollay Square para obter alimentos.

Mesmo depois de todos os elementos da sua família terem partido, a livraria continua a ser o seu território de eleição e, pouco a pouco, conhece todos os túneis e todos os espaços exteriores. De longe, observa os seres humanos, identificando-se com eles até nas fantasias amorosas, influenciadas pelo cinema do bairro.

Esta crise identitária leva-o a pensar que pode estabelecer laços de amizade com Shine Norman, o dono da livraria. Tal ingenuidade suprema quase lhe custa a vida e corresponde a uma viragem na ordem dos acontecimentos que lhe permite conhecer a outra figura de destaque na história, Jerry Magoo, o ser humano de nos salva a reputação da espécie com a sua bondade e inteligência.

Como não posso contar mais sem incorrer no pecado capital de desmotivar outros possíveis leitores para a fruição deste texto, quero apenas dizer que aconselho vivamente a audição, em simultâneo, do grande cancioneiro de jazz americano: os temas de Cole Porter, a voz da Billie Holiday, o saxofone de Charlie Parker... Esta banda sonora permitirá recriar, na perfeição, a Boston perdida de Firmin e de Sam Savage, o autor da obra que eu, negligentemente, ainda não mencionara. Natural da Carolina do Norte, licenciado e doutorado em Filosofia, Savage foi ao longo da sua vida um diletante e insaciável leitor, de modo que, aos sessenta e cinco anos, nos presenteou com esta “história mais triste do mundo” que nos delicia pela voragem centrípeta de muitas leituras, pela delicadeza das ilustrações a carvão e pela identificação patética com o protagonista.

Alexandra Lopes

Campo Maior, 29 de Abril de 2010

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